O Padre e o Professor

Exmo. Senhor Padre,

Perdoe-me a ousadia de o contactar sem mais, mas, com uma profunda crise existencial, não vejo pessoa mais indicada para partilhar o que me vai na alma. 

Sou um Católico baptizado, crismado e praticante de vinte anos. 

Ultimamente, porém, tenho sentido muito a hipocrisia e a intangibilidade das práticas religiosas que me ensinam desde tenra idade, e pode-se dizer que nunca estive tão 'desconfiado' da Igreja e dos seus dogmas.

Não é que tenha deixado de Acreditar, mas todos os rituais e ensinamentos me parecem cada vez mais fúteis e desenquadrados com o ritmo acelerado desta sociedade, bem como relativamente inaplicáveis à minha geração; e não ajuda ver pessoas (amigas, conhecidas, desconhecidas) que tanto os apregoam, praticam e defendem, quebrarem-nos sucessiva e sistematicamente em privado.

Posto isto, estou a pensar pôr a minha fé em suspenso durante uns tempos e entregar-me por completo à ética e moralidade. Penso que esta poderá ser uma boa altura também para explorar alternativas à religião, ou pelo menos, à minha (diz-se que o cristianismo ortodoxo e protestante é mais evoluído e adaptado aos nossos tempos do que o católico... porque não procurar explorar essa via?).

Atenção: quando tiver filhos, desejo ardentemente que também sejam baptizados, que também façam a primeira comunhão e que também sejam crismados. No fundo, quero que tenham uma educação Cristã: uma educação com princípios e exemplos, sacrifícios e mensagens de humildade. Mas depois, a partir de uma idade em que comecem a pensar com autonomia e discernimento, quero que decidam por eles próprios e livremente que rumo dar às suas crenças.

A imprensa mais sensacionalista afirma que a religião vai começar a desaparecer daqui a cerca de meio século, e que é de certa forma um obstáculo à evolução natural da sociedade - quer seja de matriz cristã ou não.

Não sei onde fico no meio de tudo isto. 

O que sei é que me sinto mal e culpado ao ter estes pensamentos, por refutar algo a que pertenço praticamente desde que nasci, algo a que estou adstrito... O que me leva à seguinte questão: será a religião uma prisão? Será que estou efectivamente preso a algo e não consigo ver para além disso? E se assim for? O que terei eu perdido este tempo todo? É que apesar de tudo o que ganhei através da fé, não gosto de muita coisa: do receio de ser julgado por 'incumprir', não gosto de me sentir um 'pecador' por actos absolutamente banais e “da idade”, não gosto de me confessar, não gosto de me sentir obrigado a procurar sentido em parábolas desactualizadas e tão distantes...

Enfim, fica o desabafo Senhor Padre... 

Atentamente,

Daniel

Exmo. Senhor Daniel,

Vou enumerar isto por pontos para ser mais fácil de organizar as minhas ideias.

1- Acabei ainda a pouco de celebrar a missa e ao vir para casa deparei-me com o teu email. E por incrível que pareça o Evangelho é a história de Nicodemos (convido-te a meditar neste texto da Bíblia - Evangelho de São João, capítulo 3, versículos de 1 até ao 8).

2- Nicodemos era um velho fariseu que se dizia conhecer de toda a sua religião judaica, mas, no meio de uma noite (sinal de algum medo e de dúvida), chega perto de Jesus começam a falar. Nisto, Jesus convida-o a nascer de novo... 

3- Não te conheço pessoalmente nem "digitalmente" por isso para mim é difícil olhar para o teu caso particular, mas como padre/sacerdote vou procurar dar-te umas orientações espirituais.

4- Estás a dizer que estás numa «profunda crise existencial»... E digo-te ainda bem!!! Sabes que os santos também passaram pelo mesmo? Conheces a Madre Teresa de Calcutá? São João da Cruz? São João Paulo II? etc... Todos tiveram momentos iguais aos teus, mas o que os tornou santos ou bons cristãos foi a sua fé, isto é, permaneceram firmes naquilo que acreditavam.

5- Alegro-me por seres «um Católico baptizado, crismado e praticante de 23 anos», mas desculpa a minha ousadia, mas já descobriste realmente a "alegria da fé"? Convite que o Papa Francisco fez a igreja. Tu falas em  "hipocrisia", "intangibilidade das práticas religiosas" da 'desconfiança' da Igreja e dos seus dogmas... etc... E talvez tivesses muito mais a dizer e acrescentar... Mas pergunto-te já te encontraste pessoalmente com Jesus? Quanto tempo perdes a falar com Jesus? Quanto tempo perdes diante do sacrário? Quanto tempo pegas na Bíblia para a poder ler e compreender? Acredita amigo, que a igreja deixa de ter sentido quando nós retiramos Jesus de lá. A igreja passa a ser uma fabrica ou uma instituição de bem, mas não é realmente o lugar de encontro com Deus. Antes de qualquer julgamento a igreja, ama e procura amar cada vez mais Jesus e verás que irás amar a Igreja.

6- Falas de uma certa "desconexão" entre a tua geração e a sociedade... Acredita mais do que nunca a igreja está atenta aos jovens... A igreja acolhe-os... Caminha com eles... Envolve-os na comunidade... O Papa convoca jornadas atrás de jornadas... 

7- Verdade e falsidade nos membros... Isto é o que torna a igreja pecadora e necessitada de conversão... Tantas e tantas vezes temos consciência que estamos a agir mal enquanto cristãos... Chamamos a isto de pecado e o pecado macha a igreja... Os teus, os meus... Pecados são os pecados da igreja... Por isso, precisamos de conversão e procurar transmitir a nossa fé com coerência... Por exemplo, de que vale a pena falar do amor de Deus se eu nem consigo perdoar algo a alguém...

8- Colocar a "fé em suspenso"? Faço-te o desafio e porque não voltar a descobrir a fá de novo? Sabes que uma ética/moral sem a fé, equipara-se a um manual de bons costumes. A fé leva-nos sempre para a dimensão sobrenatural. Por exemplo, olhemos para a morte de uma pessoa. 

a) Olhar da moral: era uma boa pessoa, fez o bem, era amiga do seu amigo, etc... mas agora morreu.
b) olhar da ciência: o corpo deixou de reagir e morreu; 
c) olhar da fé: a vida apesar de ser feita de bons e maus momentos continua junto de Deus. 

Este é o olhar de fé que nos leva para outro horizonte que não é visível aos nossos olhos, mas que o sentimos na experiência transcendental.

9- Cristianismo ortodoxo e protestante.... Não vou julgar estas pessoas que têm estas confissões diferentes, mas pergunto-te qual foi a igreja que Jesus fundou? A Bíblia diz que Jesus olhou para Pedro e diz-lhe: Tu és Pedro e sobre ti fundarei a minha igreja e as portas do inferno não vão prevalecer contra ela. Imagina que vais a "missa" e não fazes o que Jesus mandou fazer sempre que nos reunimos... os protestantes só se alimentam da palavra e não tem a segunda parte da missa... os ortodoxos celebram a "missa" por detrás de uma parede e as pessoas ficam a rezar aos santos... Quando nós conhecemos a verdade não precisamos de experimentar outras verdades... Recorda-te da frase: Eu sou o caminho a verdade e a vida.

10- Quando tiveres filhos, procura dar o melhor a eles, incluindo uuma fé verdadeira e firme em Jesus.

11- Não digas que a religião vai morrer... Nossa Senhora de Fátima disse que a fé nunca ia desaparecer dos corações do nosso país... A igreja já é mais antiga do que tu e eu... Ela já tem mais de 2000 anos e sabes porquê? Porque ela é iluminada e guiada pelo Espírito Santo.

12- A fé não é uma prisão mas a maior capacidade de liberdade humana de aderir a Deus.

13- Fiquei cansado de escrever este email, se quiseres falar pessoalmente posso dar-te o meu número... Tenho muito gosto em falar contigo.

Um abraço amigo

Exmo. Senhor Professor Doutor,

Perdoe-me a ousadia de o contactar electronicamente e sem nos conhecermos, mas como docente de renome, investigador na área da ética e religião e célebre ateu, não vejo pessoa mais indicada para partilhar o que me vai na cabeça. 

Sou um Católico baptizado, crismado e praticante de vinte anos que atravessa uma espécie de “travessia no deserto”, e venho de uma conversa com um padre que pouco ou nada ajudou: conversa com muitas frases feitas e as orientações espirituais esotéricas "do costume"... 

Escrevo-lhe para partilhar que nos últimos tempos me tem custado muito aceitar a imposição de princípios basilares do catolicismo – que já se encontram tão enraizados na minha consciência – à minha vida adulta. Nutro um grande respeito pela educação cristã, repleta de ensinamentos nobres e bondosos, mas que verdadeira aplicabilidade terá essa formação nos nossos dias?

Sempre ouvi dizer que “a fé é cega”, mas o que recebemos em troca dessa venda, para além de ensinamentos metafísicos e inúteis,
tal o estado de desenquadramento com o ritmo da minha geração? Não haverá tanto para descobrir para além dessa escuridão? E porque é que me tenho de sentir um pecador por querer abrir os olhos e ver a luz?

A imprensa mais sensacionalista afirma que a religião vai começar a desaparecer daqui a cerca de meio século, e que é de certa forma um obstáculo à evolução natural da sociedade. Os meus instintos actuais tendem a acreditar que esta afirmação pode não estar longe da verdade, e que todos devemos explorar alternativas à religião como padrão de conduta, como uma entrega total à ética e moralidade.

A verdade é que me sinto desconfiado e cada vez mais a questionar se as minhas crenças não me estarão a estagnar a evolução como ser humano, e a impedir-me de me elevar verdadeiramente…

Enfim, fica o desabafo Senhor Professor... 

Na esperança de uma resposta que me possa ajudar, despeço-me respeitosamente.

Atentamente,

Daniel

Boa tarde Daniel,

Desculpe o atraso na resposta à sua mensagem. Não costumo receber "desabafos" deste calibre por correio electrónico. Já na minha condição de livreiro do Bairro Alto entre os anos de 2001 e 2006, dono e único funcionário de uma pequena livraria especializada em Filosofia, foram muitas as noites experimentadas à volta de vidas em carne viva. Beneficiei da ideia de que na minha livraria se poderiam encontrar aqueles livros que podem mudar um destino, ou simplesmente que amplificam a percepção dos mil e um pequenos cenários privados que compõem uma alma. 

O quadro que traça do seu universo interior não é muito diferente dos labirintos de todos aqueles que cresceram em atmosferas místicas, rodeados de símbolos do infinito e da perfeição. E, como para eles, há sempre um momento em que esses templos mentais entram em desagregação. É o preço a pagar pela exigência de lucidez, pelo combate pela razoabilidade das referências que nos foram dadas, tanto no plano da teologia, como da metafísica, ou mesmo da ética e da epistemologia. Eu próprio passei por essa experiência. Aí, o factor de revelação de mim e mim mesmo foram as aulas de filosofia que recebi aos 16 e 17 anos no liceu - já lá vão mais de 40 anos. Eu preparava-me para seguir Arquitectura. No último ano do liceu fiquei tão marcado por aquelas aulas que decidi candidatar-me ao curso de Filosofia da Faculdade de Letras. E, desde então, não há um dia em que eu não sinta o prazer de poder pensar todas as coisas até às últimas consequências, sem fronteiras de moralidade, de razoabilidade, de inteligibilidade. Todas as minhas convicções teológicas e místicas se transformaram em patamares sólidos da sua própria destituição a golpes de leituras filosóficas. Não posso senão sugerir-lhe também as delícias de algumas leituras. São os únicos amparos em momentos de hesitação. Acompanhar as nervuras do pensamento de alguém que pensa coisas que  teríamos gostado de sermos nós a pensar é a boa maneira de levarmos até ao fundo aquilo que em nós se vai pensando.

Envio-lhe, por isso, um livro de que gosto muito e de um pensador que acompanho há vários anos com imenso prazer: Giorgio Agamben. Segue em anexo, em regime de PDF. Se gostar deste livro, posso enviar-lhe outros. Se não gostar, posso também enviar outros, segundo registos diferentes, de modo a acertar no centro daquilo que lhe interessa.


Aceite os meus melhores cumprimentos.

Comentários

  1. Caro Daniel,

    escrevo como católica mas como alguém que também já passou por uma "crise existencial" do mesmo género que a tua.
    Sempre fui católica e batizada, crismei-me quando percebi que era isso que realmente queria. Houve uma altura em que comecei a ter muitas dúvidas porque sentia que eu só era católica porque os meus pais eram e não porque eu queria, não percebia metade do que praticava e isso deixou-me totalmente sem força de vontade para continuar a fazer fosse o que fosse. Assim sendo, vivi três anos sem quase por os pés na missa e sem me lembrar de rezar e claro, toda a minha vida começou a desmoronar-se. No princípio não percebia bem porquê e ia deixando andar, depois percebi, faltava-me Nosso Senhor.
    Nesta altura comecei a procurar resposta para todas as dúvidas que tinha e não é por mandares um email a um padre que vais conseguir mudar a tua opinião. eu ainda estou nesse caminho de perguntas e respostas, há mais ou menos três anos, mas o que me faz continuar é a certeza que Nosso Senhor é, verdadeiramente, o caminho, a verdade e a vida. Este é um caminho que se faz rodeando-nos de pessoas que realmente sabem e põem em prática os cânones da nossa religião, pessoas que vivem a fé porque sabem o que estão a fazer. Não é fácil, é verdade, mas se fosse fácil não seria verdadeiro. Não foi fácil para Jesus Cristo, não foi fácil para Nossa Senhora e não será fácil para ti, mas vale a pena. Só assim encontrarás a verdadeira felicidade. Lê a Bíblia, reza o terço (mesmo que quando começares não percebas porquê), fala com padres, vários se for necessário, e encontra pessoas da tua idade que te possam explicar porque é que o cristianismo faz sentido na nossa geração. Para mim faz, se quiseres falar estou sempre disposta, mas não ponhas já de parte algo que sempre te acompanhou ao longo da tua vida.

    Que Cristo chegue a ti como chegou a mim.

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